SEMPRE VIVA
Exposição individual da artista Carol Ambrósio
Curadoria: Ana Carla Soler
Abertura: 30/11/2024 às 14h
Encerramento: 29/01/2025
Visitação: 30/11/2024 - 29/01/2025
Quarta a sábado, 12h às 17h
Provocações Poéticas com Livia Aguiar e
convidades 05/12/2024 às 19h
Oficina de colagem 07/12/2024 às 12
Conversa da artista e curadora 28/01/2025 às
18:30h
@carolambrosio
Créditos
Arte Janelas Gouvea Artes
Arte Gráfica Nina Gaul
Montador Los Montadores (Antonio)
Equipe Produção Abapirá: Liliane T Oliveira +
Jair Nascimento
Coordenação Artística do “Projeto Janelas” Bia
Monteiro
Agradecimentos:
Patrick Farrell, Espaço Abapirá, Ana Soler e
Bia Monteiro.
Sempre Vivas
Carol Ambrósio é uma artista que nega a superficial dualidade entre o que é a obra e o que é a artista. Os conceitos e a vida se mesclam. Sua linguagem é uma coleção pessoal que une sua bagagem de experiências e seu olhar aguçado para encontrar peças e objetos que carregam histórias. A composição da mostra Sempre Vivas, que conheceremos a seguir, também é feita por essas histórias. Carol usa um repertório que lhe é familiar: relíquias de cerâmica e achados em porcelana. A artista cresceu entre estantes e prateleiras do antiquário do seu pai, submersa no encantamento de desbravar um salão de preciosidades. Hoje, nas estruturas que confecciona, seleciona cada artefato em feiras, leilões, mercados, viagens e, claro, antiquários, e os une em aparente equilíbrio.
No espaço expositivo da Abapirá, as assemblages, investigações dos últimos cinco anos de pesquisa da artista, estão apresentadas em mobiliários da sala da casa de Carol. A sua casa, e também ateliê, é seu livro biográfico em constante transformação. Lá estão suas obras em simbiose com sua coleção de trabalhos de artistas contemporâneas, que ocupam as paredes do chão ao teto. Jardineiras, mesinhas, cômodas e pedestais aconchegam as estruturas totêmicas que a artista cria e expõe em seu ateliê-sala de casa e, agora, no espaço expositivo da Abapirá.
Esse ambiente, onde faz uma arqueologia de tesouros, permeia toda a vida de Carol. Sua produção artística é um transbordamento de sua essência curiosa. Por mais de 15 anos, ela desenvolveu peças para figurino e cenário. Suas composições na moda uniam roupas encontradas em brechós com tecidos descobertos pelo treino, para encontrar raridades. Em suas assemblages notamos que cada parte não é um mero objeto, os insumos da artista carregam memórias inscritas nas peças e na historiografia de uma sociedade que é fruto da encruzilhada.
Proponho-me a enxergar por três “olhos mágicos” para abrir histórias, esses furinhos envidrados de forma convexa nas portas que nos permitem ver uma parte do outro lado, mas apenas uma fração, um recorte. Eles apresentam contextos para os capítulos que se desdobram dos trabalhos apresentados por Carol. Ao final, espero ter conduzido os leitores por janelas de fruição das obras, não como quem entrega o final da história, mas como notas de rodapé que enriquecem as percepções da exposição Sempre Vivas.
Da terra ao céu: a hierarquia do barro
Para muitos dos povos originários das Américas, o barro é um parente ancestral. O processo da cerâmica confeccionava desde objetos utilitários do cotidiano até a urna que faz a passagem do corpo para outra dimensão. No cotidiano brasileiro é fácil encontrar os primos desses objetos na cozinha: um filtro de barro ou uma cumbuca denunciam sua herança genética. Em outra dinâmica cultural do outro lado do oceano Atlântico, os utensílios em porcelana encontrados e ressignificados por Carol nas suas assemblages retornam ao período da invasão portuguesa ao Brasil.
Com a presença forçada de estrangeiros no país, seus modos são compartilhados, ou melhor, impostos. Reproduzindo a cultura europeia, as peças em porcelana eram utilizadas em ocasiões especiais como sinônimo de prestígio, elas anunciavam a posição social de seu proprietário. Não é surpresa que a maioria dos artigos colecionados pela artista sejam provenientes de leilões e casas de antiguidade cariocas, locais que receberam a corte portuguesa no início do século XIX. Na obra de Carol, elementos como xícaras, bules, pratos e pequenas esculturas delicadas estão elevados verticalmente e desempenham analogias sobre uma hierarquia social que não equaliza a presença interseccional nas estruturas de poder.
Bibelô, um dia, foi elogio
Não é nem começo, nem fim. É o meio. Carol tem na arte um diário de sua vida. Pequenos trechos biográficos. Nas diegeses criadas pela artista, as peças decorativas ou utilitárias se encaixam em uma sobreposição de simbologias. Quando criança, era comum escutar que outras meninas pareciam um “bibelô”. Esta palavra, usada como um elogio, faz uma metáfora para descrever uma pessoa de pele alva, com cabelos lisos e claros e de estrutura corpórea magra.
Em uma das assemblages apresentadas na mostra, o corpo de uma pequena bibelô de porcelana está preso em um grande copo de vidro. Em outra, uma donzela em casaco branco carrega o peso de xícaras e potes maiores que sua estatura. Pequenos traços do que é ser um corpo mulher em uma montagem patriarcal e machista de sociedade.
A pantera que habita esses corpos enjaulados em expectativas estéticas entra em composição com filtros de barro que um dia mataram a sede e que rememoram a casa dos mais velhos. Fragmentos de peças, partidas pelo tempo e pela presença, agora formam corpos mitológicos. Não se trata de uma ideia de vida e obra como causa e efeito, mas como a possibilidade de rastros da vida que estão atualizados na obra e da obra, se atualizando constantemente a cada nova confecção pela vida.
“Sempre vivas”, na verdade, são cadáveres
Plantas vivas estão plantadas no meio que melhor se adaptam, possuem raízes e executam a fotossíntese. Ao separar uma flor do caule que a nutre, como todos os seres orgânicos, estão mortas. Em uma das visitas que fiz em seu ateliê, Carol me contou que flores desidratadas lhe lembram cadáveres, mas que, por ironia, na linguagem popular elas são chamadas de “sempre vivas”.
Se hibridizando com a coletânea de peças reunidas por Ambrósio, espécies de plantas e flores encontram morada nas esculturas em xícaras, cuias, molheiras e potes, agora ressignificados para esta função. A artista elabora nessas esculturas a partir de três formações: plantas vivas, plantas secas e plantas artificiais.
Os processos artísticos de Carol acolhem pesquisas de imagens, que muitas vezes se manifestam em colagens, e investigações em livros, outras tantas vezes apropriados pela artista em obras. Essa jornada cruza mares até a tradicional porcelana chinesa e encontra porto em livros de botânica. Estes últimos despertam a atenção para os nomes informais de plantas, parecem colocar características fantasiosas para a realidade botânica. “Amor perfeito”, “bela da noite” e outras tantas projeções que correlacionam a idealização masculina sobre as mulheres e forçam uma comparação entre as mulheres e as flores. Sempre na performance da delicadeza.
Os trabalhos aqui expostos questionam os papéis de gênero e expõem a estrutura social em que estamos inseridas. Por meio de obras que interagem entre o orgânico e o sintético, entre os que está vivo e o que está morto, Carol Ambrósio une a fantasia com a realidade e cria um conto sem fadas.
Numa história que não há fim decretado, estamos concentradas no meio. Nas convenções de uma sociedade que por tempo demasiado subjugou — e subjuga — a força e a potência de agir feminina. Uma sociedade que definiu modos de se comportar, de escolher, de criar e os impôs a estes corpos, comumente ofuscados por figuras masculinas em vínculos genéticos, matrimoniais ou sociais.
Para assistirmos, hoje, conquistas que parecem cotidianas, como o direito ao voto, a decisão de companheiros (as) de vida, a autonomia do trabalho, inúmeras regras foram desobedecidas, foram quebradas. Carol recolhe os cacos dessas histórias e as remonta, são documentações de denúncia, flashes de luz em partes esquecidas, mas, principalmente, são fragmentos que compõem a artista, mãe e brasileira Carol Ambrósio, e que também fazem parte da narrativa de todas as mulheres.
Ana Carla Soler