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Maio - Julho 2023

KALUNGA KIA KOLELAKU

Em kia kolelaku, Luanda ativa o tempo circular insurgente que liga o presente à ancestralidade. Assim nos conduz por marés em que passagens decisivas, apagadas das histórias atlânticas, foram navegadas e além: por territórios de resistência, os Terreiros de Umbanda, forjados nos embates contra-coloniais no Brasil. Povos escravizados, cujo sofrimento perpetrado nos naufrágios atlânticos − seus corpos lançados no oceano profundo ou marcados por suplícios em terra − voltam a soprar rumores, que Luanda desvela em traços amorosos, com os matizes do azul e o escorrer dos desenhos terrosos. No Ateliê Terreiro há, ainda, escuta para cantos e relatos de seus ancestrais. Na Mesa de Griot, onde trabalha, representações de entidades – o preto velho, seu pai, sua mãe, caboclas e caboclos que vê e escuta – coexistem com cadernos em que são reunidos esboços de suas faces, pontos da Umbanda e rastros desses encontros espirituais. Na série Desenhos dos ancestrais, as linhas que se sobrepõem em grumos ou se espalham tateantes, rarefeitas, reverberam um olhar acolhedor e esperançoso, tal como a calmaria do mar, em que o trágico naufrágio subjaz na imensidão azul.

 

A retomada, em registro próprio, de ritos e objetos de culto da tradição da Umbanda se contrapõe ao esvaziamento e à mercantilização do sagrado. Assim, se rebela à redução do viver às práticas narcisistas e voláteis da rasa cultura das redes sociais, aos cliques e algoritmos que reduzem indivíduos a números em cálculos voltados para a dominação e o capital. As práticas de terreiro e da arte, reconsideradas por Luanda como núcleos de resistência contemporâneos, nos convidam a habitar esse território aberto pela pulsação circular dos cantos ancestrais. Por meio da sonoridade da língua kimbundu; da manipulação de matérias de terreiro, como o café e o anil adotados em pinturas e desenhos; assim como da rememoração poética na performance, a artista abre esse terreiro-território e nos convoca: “Vá ao terreiro ver e lembrar / que seu país nasceu de uma longa escravização. ”

 

Kalunga kia kolelaku ativa as duas faces dos pórticos que ligam a rua ao interior da Abapirá. O casarão está situado na rua do Mercado, antiga região de comércio no Centro do Rio de Janeiro, que remonta ao passado colonial e às histórias silenciadas nos quase 400 anos de escravidão no Brasil. Para quem circula na estreita calçada, o vulto de expressão acolhedora que emerge de camadas aquosas em café e anil na pintura monumental Pai Cipriano é incontornável, pois toma completamente o vão do arco. Já no segundo pórtico envidraçado, pendem as contas de Rosário dos barros, formado por três grandes rosários de cerâmica. De modo contundente e afirmativo, estas presenças ostentam a contraface da dominação colonial, nos arredores da orla da Baía de Guanabara, por onde seguiam as embarcações do comércio atlântico de corpos escravizados até a região da Pequena África, onde fica o Ateliê Terreiro.

 

Da rua, é possível ainda entrever o interior do espaço, onde um conjunto de trabalhos articula várias passagens da prática no Ateliê Terreiro: uma fotografia da Mesa de Griot e, ao fundo, a série Desenhos dos ancestrais que, em marrons fluidos, desvenda feições de entidades que Luanda recebe. Ocupando todo o verso da pintura Pai Cipriano, se abre a escrita do poema Cada gota de cera é uma lágrima do passado – também falado na performance Terreirão. Heranças dos povos escravizados – Congada, Jongo, Samba de Roda, Choro, Samba, Capoeira, Ijexá, Candomblé Angola, Umbanda, Carnaval –, dentre tantas outras, são rememoradas aqui, na voz de Preto Velho. Revendo a tradição oral de terreiro na performance, essa voz revive o ciclo de vida e morte na travessia atlântica, enquanto a cera das velas goteja depositada no alguidar, louça sagrada, onde as lágrimas ancestrais são colhidas. Salve as Santas Almas Benditas / Do Cruzeiro e da Kalunga / Saravá que vem Luanda / Salve as Almas de Aruanda – saudações que ressoam na canção Viva as Almas! encerrando a performance que, mais uma vez, gira o tempo circular de Dikenga. Marcam, assim, a resistência de povos escravizados: ao controle sobre seus corpos; à perseguição de crenças, vivências espirituais e comunitárias, ao domínio eurocêntrico homogeneizante. Sob o manto da modernidade, como sabemos desde o pensamento ativista decolonial, está a colonialidade. Ambos, indissociáveis da ideia do conhecimento universal linear, desqualificam a rica diversidade cultural e religiosa das etnias encontradas por toda geografia dominada. A resistência possível parte, então, da afirmação da diversidade. À luz das vivências geograficamente situadas, o conhecimento assume um caráter pluri-versal, enraizado no que é específico e diverso, como modo de habitar junto, de coexistência.

 

Ao rever a vivência artística como prática de terreiro, Luanda identifica na Umbanda um duplo enlace. Por um lado, abre acesso à sua ancestralidade diversa. Por outro, a religiosidade de origem kongo-angolana, enraizada no Rio de Janeiro, fornece o lastro local de sua estratégia insurgente. Pois isto a aproxima dos povos de Terreiro e quilombolas – tratados por Nego Bispo como grupos afro-pindorâmicos, que sustentam posições de resistência aos embates coloniais contemporâneos. Para Bispo, a religiosidade, fator preponderante da colonização, é um aspecto privilegiado para o entendimento das diversas maneiras de viver. De modo lúcido e assertivo, entende que “o presente atua como interlocutor do passado e... como locutor do futuro”. Portanto, investigar o sagrado e a ancestralidade, como propõe Luanda, sempre atenta ao pensador e a*vista quilombola, tanto aponta para o presente como rearticula o futuro. Com essa clara ruptura do pensamento hegemônico universalista e desterritorializado, encontra certo sentido de comunidade pelas trilhas do sagrado e da integração com a natureza, abertas na Umbanda e nas tradições dos povos originários no Brasil.

 

Na religiosidade surgida na fricção − ou seja, no confronto entre matrizes africanas, povos originários do Brasil e o catolicismo no mesmo espaço lsico, emerge o tempo longo e não linear. Mas, para o diagrama circular da cosmologia Bakongo, no qual o tempo gira em sentido anti-horário, a linha determinante é a que divide céu e mar. No Dikenga, com o nascimento e após o ápice da existência, o ciclo continua até o cruzamento da kalunga, a passagem para o imaterial e o retorno ao mundo lsico. A linha do mar coincide com esse horizonte de passagem entre a luz solar e o mergulho profundo no Mpemba. Estes quadrantes são riscados na pintura de grandes dimensões Dikenga, da série Ancestralidade e AtlânCco, posicionada no interior do espaço Abapirá. Tal como os pontos cardeais, dividem e orientam um campo azul dissolvente, que evoca a potência movediça do oceano. Diante desse mar, justo ao centro do Dikenga, flutua uma moringa, receptáculo de argila – a terra. Unidos à distância, iniciam uma outra volta desse ciclo em que a potência do sagrado retorna. Mar, terra e espírito se entrelaçam.

 

Posicionar-se poética e politicamente implica vislumbrar, em seu próprio tempo, a sombra e o invisível que o iluminam. Luanda conduz essa investigação do presente em um campo ambivalente, onde dissolve as bordas que separam a prática artística do trabalho espiritual. Observa, escuta e trabalha na Mesa de Griot, em fabulações que aderem às vivências contra-coloniais dos corpos marrons no Brasil. Busca a própria ancestralidade nas revelações de parentesco de mensageiros espirituais, nas diversas vozes que se aproximam e ligam suas vivências às matrizes afro-pindorâmicas formadoras do Brasil. Num ativismo de caráter contra-colonial, Luanda investiga a saga dos povos escravizados que cruzaram o Atlântico, e segue ao encontro de sua própria ancestralidade, como tática para desvelar decisivas estratégias coloniais contemporâneas, tais como o racismo e a exacerbação narcísica que descola a experiência tanto da diversidade das vivências comunitárias quanto do sagrado.

 

Curadoria e Texto - Luiza Interlenghi

 

Luanda é artista plástica, natural de Porto Alegre-RS e vive no Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Sua prática artística faz relações entre arte, ancestralidade e terreiro, histórias atlânticas e contra-colonialidade com o uso de diversas linguagens, incluindo instalação, pintura, escultura e vídeo. Fundadora e gestora do Ateliê Terreiro. Diretora cinematográfica com registro DRT 4892/SP. Doutora em Artes pelo PPGAV-EBA-UFRJ com a tese Kalunga mu Kizua - O mar em tempo (2021). Trabalha com arte contemporânea desde os anos 2000. Realizou diversas exposições e residências artísticas no Brasil. Argentina, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Peru, Malásia e Romênia.

http://luanda.art.br

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