o que ficou do rasgo
Fabianna Pellegrino
Um poema (Silêncio) e algumas colagens ocupam nossas Janelas pra travar uma conversa com os passantes da Rua do Mercado nesses tempos de incerteza e pandemia.
A obra incita a nos questionarmos sobre o valor das palavras e do mundo imagético numa combinação que reforça as dúvidas, mas que convida resposta de quem vier se inquietar.
Vamos nos propor, antes de tudo, ao olhar devagar:
silêncio
no princípio
as palavras
eram mágicas.
dizia-se "oceano":
de súbito os olhos
dos abismos
enchiam-se d'água.
dizia-se "luz":
e às trevas traziam
carícias
os raios mornos
da manhã
e assim foi com
bicho-fruto-céu
planta-lua-sol
terra-estrela
chão
e assim, palavra
sobre palavra,
construiu-se a casa
onde habita o homem
[e a mulher, também,
no quarto dos fundos]
mas certa feita
as palavras
foram sopradas
sem o mesmo
fôlego da vida
palavras que,
de desabitadas
pelo talvez,
nada tinham
do sim
que a primeira
molécula
disse à outra
o que se pode tirar é que,
em princípio,
deus gastou todo
o verbo
e, desde então,
não se fala mais nisso.
Abapirá - Mercado de Textos e Imagens
Rua do Mercado 45, Centro, Rio de Janeiro
De 10 de Fevereiro a 20 de março de 2021
O que ficou do rasgo de silêncio de Fabianna Pellegrino
A palavra é um objeto? A palavra representa um objeto? Questões que vão de Ceci n’est pas une pipe de Magritte, mas que podem sugerir o comentário de Andy Warhol sobre o espelho que olha para um espelho e sua indefinida imagem refletida: esta seria o quê, afinal? Qual é a miragem projetada daquilo que já é miragem em si?
Fabianna Pellegrino ocupa as janelas da Abapirá com seu poema Silêncio, onde trata da relação das palavras e da construção do mundo; ao menos numa primeira leitura. Na verdade, o poema se transforma em algo novo a cada vez que nos debruçamos nele. Seu humor final pode ser irônico, mas pode ser inocente, pode ser consciente ou inconsciente: e não é isso que cabe a um artista?
E essa não deve ser a especialidade do poeta?
Dar espaço ao observador para que a obra importe aquilo que lhe cabe criando um mundo inteiramente novo, que jamais existiria sem o conjunto obra/observador. Além do poema, colagens visuais criadas pela artista estão lá também: dos observadores liliputianos da deusa grega às vacas magras que pastam o mar inundado no apoio à Capitu que devolve recatadamente o olhar ao fruto proibido.
Sua delicadeza está justamente em criar ambas possibilidades, em não descartar o todo complexo que somos, céticos ou crentes.
“Tenho certeza que vou me olhar no espelho e não ver nada. As pessoas estão sempre me chamando de um espelho, e se um espelho olhar no espelho, o que haverá para ver?” Andy Warhol
Andy Warhol gostaria de ser poeta, com certeza... hoje a força da poesia vem de Fabianna.
Foucault levanta a possibilidade da tela de Magritte ser um caligrama, um conjunto gráfico e ortográfico que elimina a retórica para fazer brotar um novo campo de compreensão. Em seu texto, ele enxerga a negação da imagem óbvia como um poema gráfico perfeito, onde a dissolução daquilo que seria um típico caligrama forma aquilo que somente o é metafisicamente.
“A forma, quanto a ela, volta a seu céu, do qual a cumplicidade das letras com o espaço a havia feito descer por um instante: livre de qualquer liame discursivo, ela vai poder flutuar de novo em seu silêncio nativo.” Michel Foucault
Se para Foucault pintar não é afirmar, parece que para Fabianna escrever não é dizer...
A mentira das palavras encontra-se nas esquinas de nossa representação momentânea das suas imagens inventadas. A verdade das palavras está na nossa intima experiência de sua tangibilidade extrínseca, um honesto paradoxo. Fique claro que a mentira não é o inverso da verdade, mas a possibilidade de enganar a certeza que buscamos como verdade.
A poesia aqui parece aquela camada d’agua entre o vento e sua profundidade que se arrepia sem revelar de pronto aquilo que quer importar. Um sopro de mulher neblina no mar, como Iansã.
Gui Martins Pinheiro, fevereiro de 2021.