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Teletrabalho

Glauco Adorno

Através da cópia manual de artigos digitais, Teletrabalho comenta sobre relações de consumo de informação e trabalho no século XXI. A obra consiste em artigos digitais copiados da internet à mão em folhas de papel e colados nas janelas da Abapirá até cobri-las por completo. O trabalho acontece gradualmente em horários fixos, contabilizando uma carga horária de vinte e seis horas e meia. Todos os cento e sessenta artigos - número suficiente para cobrir as janelas - abordam temas relativos ao ócio, ao tédio e à preguiça, em oposição ou intersecção com idéias sobre produtividade e eficiência. O discurso nos artigos é permeado pela crise causada pela pandemia do Covid-19, que colocou relações de trabalho e suas dimensões morais no centro das discussões sobre a sociedade ao longo de 2020.

Ao reescrever conteúdo digital à mão, Adorno propõe uma reflexão sobre a natureza controversa do ócio e do lazer num mundo onde conexões virtuais são onipresentes Teletrabalho argumenta que ao sustentar esse sistema de produção e consumo de conteúdo, nos tornamos não só recipientes de seu produto final mas também agentes que acabam por gerar valor para outrem. Nesse sentido, decodificar e absorver informação, mais do que hábito ou entretenimento, é uma forma de trabalho não remunerado.

Glauco Adorno - O Escrivão entre o tédio digital e a possibilidade analógica

 

 

Nas linhas de Heidegger em Ser e Tempo, a angústia se relaciona com a radical possibilidade do que somos vis a vis a radical indeterminidade da existência e a temporalidade que representa na vida humana: somos possíveis pois indeterminados em nossa finitude.

 

A tendência do ser humano é achar que colocamos a nossa existência em jogo nos momentos dramáticos pessoais. O tédio é a impossibilidade existencial do ser; a sua percepção de que não há mais alguma possibilidade ao ser, é o Adão antes de compreender a possibilidade de comer o fruto proibido. A angústia é um clamor de que você precisa ser no tempo, provém do fundo obscuro da existência e emerge do nada que nós somos, pois sendo nada podemos ser tudo e enquanto não o somos, nos angustiamos querendo: o porvir do angustiado é o ‘nada’.

 

E por que pensar nisso quando estaremos diante de Glauco Adorno na execução de sua nova obra?

 

Talvez por que o tempo não pareça existir nesse mundo digital que nos envolve. E o exercício que o artista propõe ao transcrever cada um dos 160 artigos selecionados do meio digital atemporal para o meio caligrafado analógico transitório, venha a sugestão dessa angústia como constatação da temporalidade humana. Cada folha que ele cola ao vidro das Janelas da Abapirá é uma prova de que somos perecíveis, contrariamente ao mundo do qual ele ressignifica.

 

Além do mais, os artigos que copia desse mundo atemporal trazem uma carga de determinação por um lavoro eficaz durante um curso de tempo em que até a Terra pede uma relação diferente com o momento. Cada um desses artigos nos diz que é tempo de sistematizar, catalogar e aprimorar o uso do ócio, retirando a possibilidade de angústia. Ele parece resgatar o oposto, através da faina de escrevê-los à mão.

 

O artista está executando uma obra que requer um trabalho manual de aproximadamente 26 horas e meia, onde fixa-se numa cadeira como o escrivão de Herman Melville, porém se nega não a fazê-lo, e sim a aceitá-lo sem questionar. O lavoro caligráfico joga no observador a dúvida sobre aonde encontra-se o trabalho numa consulta ao são Google. O clique rápido e sistemático no mecanismo de busca gera uma série de resultados que servem a nós; mas por quem? Onde está o valor do trabalho?

 

Estamos agora atentos à percepção externa que Glauco reverte na sua obra. Quando transcreve aqueles textos digitais que, à primeira vista, não nos parecem originados em um trabalho real ele joga uma realidade que está confusa nos dias de hoje, mesmo nos confrontando a ela minuto a minuto: tudo o que a ferramenta de busca nos fornece vem de um trabalho, na maioria das vezes, árduo de outrem ao qual damos valor algum. Isso sem contar que nosso incessante engajamento coletivo acaba por solidificar e ampliar esse modelo de produção das distribuidoras de conteúdo digital e suas mídias sociais sucursais. Se esses artigos estão estimulando nosso esforço durante uma pandemia que veio para paralisar, Glauco revela que muitos trabalham a muito sem reconhecimento, de ontem ou de hoje, escravizados pelos consumidores de conteúdo digital.

 

Gui Martins Pinheiro, 19 de outubro de 2020.

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