ANDANÇA
Exposição individual da artista Juliana Ronchesel
Curadoria: Fernanda Lopes
Abertura: 25 de agosto de 2023
Encerramento: 28 de outubro de 2023
Visitação: 26 de agosto - 28 de outubro/2023, quarta à sábado, 12h-17:30h
Performance: 16 de setembro, sábado, 14h
Conversa com artista e curadora: 19 de outubro, quinta-feira, 19h
texto curatorial
A prática e a ideia de andança são partes fundamentais no processo de trabalho de Juliana Ronchesel. Esse substantivo feminino refere-se ao ato de caminhar, mas não é só isso, um caminhar qualquer. Ele também chama atenção para o modo como se caminha. Em última instância, faz referência a como pode se dar uma presença no mundo. É um passo a passo que se refere a deslocamentos cotidianos, recorrentes, mas que também é capaz de reconhecer nesse cotidiano uma espécie de aventura, a partir do momento em que esse estar no mundo nos coloca disponíveis ou vulneráveis a encontros inesperados, muitas vezes improváveis. Sorte, acaso ou destino, é em suas andanças que Juliana encontra pela cidade peças de vidro ou madeira incorporadas em muitos de seus trabalhos. Já destituídos de suas funções originais, em muitos casos é difícil identificar o que esses achados “faziam” antes. E, na verdade, aqui essa não é a questão principal. Essa memória não compartilhada junta-se a novas identidades e histórias, contadas pelas linhas da artista através da tecelagem. Andança se faz olhando para frente, mas sem deixar o que se percorreu para trás.
É também uma espécie de andança a construção dessas tramas, que começa nos movimentos sincronizados do tear, que se repetem incontáveis vezes na organização dos fios. É como se a ancestralidade que a prática da tecelagem carrega impregnasse os fios e tirasse a artista para uma (an)dança. Como um autorretrato ou uma autobiografia, as tramas de Juliana Ronchesel detêm técnicas e conhecimento acumulados de outros tempos e de outros lugares, mas também são marcadas pelo aqui/agora do corpo da artista. Penso no escultor Amilcar de Castro, que costumava dizer que gostava de trabalhar com materiais que tinham caráter, personalidade. Materiais que impunham suas características intrínsecas (como peso e rigidez por exemplo) e por isso não se sujeitavam facilmente às vontades de forma do artista. É como se o que vemos como obra fosse o resultado de uma negociação, que exige do corpo do material e do corpo do artista. No caso de Juliana Ronchesel, é preciso, além de conhecimento, força, precisão, paciência e delicadeza para manusear o tear e construir as tramas.
Essa negociação também se impõe às linhas, que reagem às forças e aos impactos do processo, resistindo até o final ou quebrando no meio do caminho. Na tecelagem tradicional, seria preciso desfazer todo o trabalho e começa-lo de novo, do início, mas na produção de Juliana, essas fissuras são incorporadas em uma pesquisa artística que envolve também perceber e acolher os movimentos de cada fio. No desejo de construir presença, os fios que rompem se misturam e se confundem com os fios soltos deixados pela artista. Sem uma contenção/amarração, eles se movimentam embalados pela simples e complicada condição de estarem no mundo. Balançam evidenciando a mais leve brisa, se embolam com o deslocamento das pessoas movimentando o ar ao redor, e começam a se desfazer, sentindo o efeito da gravidade que também nos atinge e nos condiciona. A impermanência, a fragilidade e a resistência desse corpo são como lembretes para o nosso.
A cor também é um elemento importante nessa composição coreográfica. Juliana Ronchesel costuma trabalhar com tecelagem de cor única, especialmente o fio cru natural. Isolado, parece impor uma presença visual que arrefece quando levado para o espaço. Além desse, nesta exposição a artista apostou no desafio da cor, usando grandes tramas laranjas, ressaltadas por delicadas presenças de azul. Instalados nas janelas, ecoam a transparência presente nos vidros que já são corpo da obra, ganhando novas camadas com o reflexo, a projeção e a luminosidade que essa situação configura. Há também o vermelho em pequenas tapeçarias de fios de seda tingidos com grana cochinilla – produzido artesanalmente em todas as etapas do seu ciclo por uma cooperativa de mulheres de San Pedro Cajonos, no México. Colocadas lado a lado, as três peças são quase como stills de diferentes momentos dessa trama nos quais percebemos ela se desfazendo. Completa a experiência de Andança a obra sonora que preenche o espaço entre todos os fios, e que permite tatear o processo da artista ao tornar presente ruídos, sonoridades e silêncios que ajudam a construir suas obras. Uma dimensão quase performática que mais uma vez se faz presente.
Por mais improvável que possa parecer, as andanças das linhas orgânicas de Juliana Ronchesel são como as linhas precisas no pensamento matemático: retas infinitas formadas pela ligação de uma sequência aberta de pontos, com setas para os dois lados, indicando que não possuem nem começo e nem fim. Puxar qualquer um desses fios é começar um processo longo e delicado de fazer o caminho de volta, na esperança de retornar a um princípio, quando antes era nada. Mas aqui início e fim se misturam, se confundem. O que vemos nessas linhas são rastros, caminhos, ondas, escritas, trilhas, horizontes, trajetos, rios, partituras, gráficos, trajetórias, marés que sobem e descem, linhas que indicam o tempo que passou ou o percurso feito. O que vemos são instantes, formados pelo acúmulo de passados e pela potência de projetar futuros.
Fernanda Lopes
Juliana Ronchesel é artista e pesquisadora autônoma. graduou-se em jornalismo e sua formação no campo artístico é complementada com cursos, laboratórios livres e nos acontecimentos do dia a dia. nasceu em araraquara -sp em 1990.
estuda tecelagem e a ancestralidade atrelada às tramas junto aos desdobramentos contemporâneos. possui a corporificação/incorporação em linha-escrita do sentir como principal objeto de estudo junto a uma característica de trajetória nos movimentos.
através do movimento em linha e escrita busca estar presente aos sentidos que emergem do próprio ato, sendo uma tentativa de elaborar e tornar pulsante sua própria memória/presença de mundo. instigada pelos gestos que utilizam do risco, de possibilidades de estar-permanecer, tenta decifrar as nuances da subjetividade pelo processo gestual permeado pela afetividade do têxtil em uma temporalidade viva.
vive e trabalha no rio de janeiro desde 2019.
@jronchesel